O monstro

Wagner_Caricature_25 [1]1,685 words

English original here [2]

Translated by Lawrence

Ele era um homenzinho pequenino, com uma cabeça grande demais para seu corpo — um homenzinho adoentado. Ele sofria dos nervos. Ele tinha problemas de pele. Para ele, era uma agonia ter que usar qualquer coisa próximo à pele que fosse mais áspera do que a seda. E ele tinha ilusões de grandeza. 

Ele era um monstro de presunção. Nunca, nem por um minuto, ele olhou para o mundo ou para as pessoas que não fosse em relação a si mesmo. Ele não só era a pessoa mais importante do mundo, para si; a seus próprios olhos, ele era a única pessoa que existia. Ele acreditava ser um dos maiores dramaturgos do mundo, um dos maiores pensadores e um dos maiores compositores. Ouvindo ele falar, ele era Shakespeare, Beethoven e Platão, tudo junto. E você não teria nenhuma dificuldade em ouvi-lo falar. Ele foi um dos conversadores mais exaustivos que já existiram. Uma noite com ele era uma noite ouvindo um monólogo. Às vezes ele era brilhante; às vezes, era cansativo de enlouquecer. Mas fosse brilhante ou enfadonho, ele tinha apenas um único assunto em sua conversa: ele mesmo. O que ele pensava e o que ele fazia.

Ele tinha uma mania de achar que tinha razão. A menor indicação de discordância, de qualquer um, na coisa mais trivial, era o bastante para fazê-lo desatar uma arenga que podia durar horas, na qual ele provava de tantas maneiras que tinha razão, e com uma retórica tão exaustiva, que no final seu ouvinte, atordoado e ensurdecido, concordava com ele, em nome da paz.

Nunca lhe ocorreu que ele e o que ele fazia não fossem do mais intenso e fascinante interesse para qualquer um com quem ele entrasse em contato. Ele tinha teorias sobre quase todos os assuntos neste mundo, incluindo o vegetarianismo, o drama, a política e a música; e em defesa destas teorias ele escrevia panfletos, cartas, livros… milhares e mais milhares de palavras, centenas e centenas de páginas. Ele não só escrevia estas coisas e as publicava – normalmente às custas de outra pessoa – mas ele se sentava e as lia em voz alta, durante horas, para seus amigos e sua família.

Ele escrevia óperas; e mal ele tinha a sinopse de uma história, ele já convidava – ou antes, intimava – um monte de amigos seus para virem a sua casa e a lia em voz alta para eles. Não para a crítica. Para o aplauso. Quando o poema todo estava escrito, os amigos tinham que vir de novo e ouvir aquilo lido em voz alta. Então ele publicava o poema, às vezes anos antes da música que o acompanhava ser escrita. Ele tocava piano como um compositor, no pior sentido em que isto implica, e ele se sentava ao piano, diante de grupos que incluíam alguns dos mais finos pianistas de seu tempo, e tocava para eles por horas – sua própria música, desnecessário dizer. Ele tinha uma voz de compositor. E ele convidava cantores eminentes para virem a sua casa, e cantava suas óperas para eles, fazendo todos os papéis.

Ele tinha a estabilidade emocional de uma criança de seis anos. Quando ele se destemperava, ele esbravejava e batia o pé, ou afundava em uma melancolia suicida e falava sombriamente em ir para o Oriente, para terminar seus dias como monge budista. Dez minutos depois, quando algo o agradava, ele saia rápido para fora e corria pelo jardim, ou pulava para cima e para baixo no sofá, ou plantava bananeira. Ele podia ficar arrasado com a morte de seu cachorro e podia ser insensível e impiedoso a um ponto que faria tremer um imperador romano.

Ele era quase que inocente de qualquer senso de responsabilidade. Não só ele parecia incapaz de se sustentar, mas nunca lhe ocorreu que ele tivesse qualquer obrigação fazê-lo. Ele estava convencido de que o mundo tinha a obrigação de sustentá-lo. Em apoio a esta crença, ele pegava dinheiro emprestado de todo mundo que tivesse condições de emprestar – homens, mulheres, amigos ou estranhos. Ele escrevia um sem fim de cartas de pedidos, às vezes implorando sem pudor, outras vezes oferecendo altivamente a seu benfeitor em vista o privilégio de contribuir para seu sustento e ficando mortalmente ofendido se o destinatário declinasse esta honra. Eu nunca encontrei qualquer registro de ele alguma vez ter pago ou restituído dinheiro a alguém que não tivesse direito legal a ele.

Qualquer dinheiro em que ele pudesse por as mãos, ele gastava como um rajá indiano. A simples perspectiva de uma montagem de uma de suas óperas era o bastante para fazê-lo acumular dívidas chegando a dez vezes o valor dos prováveis royalties. Com uma renda que reduziria um homem mais escrupuloso a lavar a própria roupa, ele mantinha dois criados. Sem dinheiro no bolso que desse para pagar o aluguel, ele mandava revestir as paredes e o teto de seu escritório com seda cor-de-rosa. Ninguém nunca saberá – ele, certamente, nunca soube – quanto dinheiro ele deveu. Sabemos, sim, que seu maior benfeitor lhe deu $6,000 para pagar as dívidas mais prementes em uma cidade e que um ano depois teve de lhe dar $16,000 para que ele pudesse ir viver em uma outra cidade sem ser jogado na cadeia por dívidas.

Ele era igualmente inescrupuloso sob outros aspectos. Uma procissão interminável de mulheres atravessa sua vida. Sua primeira mulher passou vinte anos suportando e perdoando suas infidelidades. Sua segunda mulher havia sido esposa de seu mais devotado amigo e admirador, de quem ele a roubou. E mesmo enquanto ele tentava persuadi-la a abandonar seu primeiro marido, ele escrevia a um amigo para inquirir se ele poderia sugerir alguma mulher rica – qualquer mulher rica – com quem ele pudesse se casar por dinheiro.

Ele era completamente egoísta em seus outros relacionamentos pessoais. Sua afeição por seus amigos era medida unicamente pela plenitude de sua devoção a ele, ou por sua utilidade a ele, fosse financeira ou artística. No instante em que eles não lhe atendessem -mesmo que fosse só por recusar um convite para jantar – ou que sua utilidade começasse a diminuir, ele os descartava sem pensar duas vezes. No fim de sua vida, só lhe tinha restado exatamente um amigo que ele tivesse conhecido mesmo que na meia idade.

Ele tinha um gênio para fazer inimigos. Ele insultaria um homem que discordasse dele em relação ao tempo. Ele armava mil planos para poder se encontrar com algum homem que admirasse sua obra e estivesse ansioso para lhe ser útil – e em seguida fazia dele um inimigo mortal com alguma exibição idiota e totalmente impertinente de arrogância e maus modos. Um personagem de uma de suas óperas era uma caricatura de um dos mais poderosos críticos de seu tempo. Não satisfeito em ridicularizá-lo, ele convidou este crítico para vir a sua casa e leu para ele o libreto na frente de seus amigos.

O nome deste monstro era Richard Wagner. Tudo o que eu disse sobre ele você pode encontrar registrado – em jornais, em registros de polícia, no testemunho de pessoas que o conheceram, em suas próprias cartas, nas entrelinhas de sua autobiografia. E o curioso sobre este histórico é que ele não tem a menor importância.

Porque este homem pequenino, adoentado, desagradável e fascinante estava certo o tempo todo. Nós é que estávamos errados. Ele foi um dos grandes dramaturgos do mundo; foi um grande pensador; foi um dos mais estupendos gênios musicais que, até agora, o mundo já viu. O mundo tinha a obrigação, sim, de sustentá-lo. As pessoas não tinham como saber dessas coisas na época, eu suponho; e no entanto, para nós, que conhecemos sua música, é como se elas devessem, sim, ter sabido. E daí se ele falava sobre si mesmo o tempo todo? Se ele tivesse falado sobre si durante vinte e quatro horas, todos os dias do tempo de sua vida, ele não teria emitido metade do número de palavras que outros homens disseram e escreveram sobre ele desde sua morte.

Quando se considera o que ele compôs – treze óperas e dramas musicais, onze delas ainda representadas, oito delas indiscutivelmente merecedoras de figurarem entre as grandes obras-primas musico-dramáticas mundiais – quando se ouve o que ele compôs, as dívidas e as dores de cabeça que as pessoas tiveram que suportar por causa dele não parecem ser um preço alto. Eduard Hanslick, o crítico que ele caricaturizou em Die Meistersinger e que o odiou desde então, agora só vive porque foi caricaturizado nesta ópera. As mulheres cujo coração ele partiu há muito estão mortas; e o homem que nunca pôde amar ninguém além de si mesmo ofereceu-lhes uma expiação imortal, eu acho, com Tristan und Isolde. Pense no luxo com o qual, por algum tempo pelo menos, o destino recompensou Napoleão, o homem que arruinou a França e pilhou a Europa; e então talvez você concorde que alguns milhares de dólares em dívidas não foi um preço alto demais a se pagar pela trilogia do Anel.

E daí se ele foi infiel a seus amigos e esposas? Ele teve uma amante a quem ele foi fiel até o dia de sua morte: a Música. Nem por um só instante ele alguma vez comprometeu aquilo em que acreditava, aquilo com que sonhou. Não há uma só linha em sua música que pudesse ter sido concebida por uma mente pequena. Mesmo quando ele é tedioso ou simplesmente ruim, é tedioso e ruim em grande estilo. Há grandeza em seus piores erros. Ouvindo sua música, não se perdoa ele pelo que ele pode ou não ter sido. Não é uma questão de perdão. É uma questão de se ficar mudo de maravilhamento de que seu pobre cérebro e corpo não explodissem sob o tormento do demônio da energia criativa que vivia dentro dele, lutando, rasgando e dilacerando com as garras para sair, urrando para ele compor a música que estava em si. O milagre é que o que ele fez no pequeno espaço de setenta anos simplesmente possa ter sido feito, mesmo que por um grande gênio. É de se surpreender que ele não teve tempo para ser um homem?