O que é uma Runa?

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Viking rune stone and grave mounds at Anundshog

3,832 words

English original here [2]

1. Introdução: As Runas e Filosofia

Vários anos atrás eu escrevi um ensaio entitulado “Notas Filosóficas sobre as Runas” (está incluído em meu livro recente Invocando os Deuses [3].) Como o título indica, o ensaio é uma tentativa de dar interpretações filosóficas a cada uma das runas. Essencialmente o que eu fiz foi pegar as interpretações dos significados das runas em Futhark e Runelore, e oferecer meus próprios comentários a estes, a partir da tradição filosófica ocidental. Minha fonte principal, na verdade, foi a filosofia alemã, e eu arrumei as runas em um sistema quase-hegeliano.

Nessa apresentação, eu tento explorar em um nível mais profunda (no que é às vezes chamado um nível “meta”) o relacionamento entre as runas e idéias filosóficas. Na verdade, o relacionamento com o qual vou lidar é tríplice: entre mitos, as runas, e filosofia. Meu propósito aqui é realmente chegar a uma compreensão mais adequada do que, exatamente, são as runas.

Para começar, seria claramente impreciso descrever as runas como uma “filosofia”. E aqui eu tomo meu rumo, novamente, de Hegel. Hegel agrupava a filosofia junto com a arte e a religião como as três maiores expressões do que ele chamou Espírito humano. O que elas tem em comum é que elas são três abordagens para alcançar um entendimento da natureza da existência mesma, e do lugar humano nela. Porém, ele via a filosofia como fundamentalmente diferente das outras duas. Tanto a arte como a religião expressam a verdade através da imagem: mitos, histórias, poesia, música, e representações visuais através de vários tipos. A filosofia, por outro lado, tenta transmitir a verdade de uma forma puramente conceitual. Ela evita imagens e símbolos.

Pela descrição de Hegel, as runas claramente não constituem um sistema de filosofia. Mas sendo assim, como deveríamos categorizá-las? Ou desafiariam elas qualquer categorização?

Em primeiro lugar, as runas são compreensíveis apenas dentro do contexto religioso e mitológico germânico. Ademais, elas parecem emanar daquilo que é geramente chamado pensamento mito-poiético (um ponto ao qual retornarei depois). Em outras palavras, elas envolvem um pensar sobre o mundo e o homem em termos de imagens e símbolos, ao invés de conceitos abstratos. Assim é tentador dizer que as runas pertencem ao reino do “mito”. Mas esse também claramente não é o caso. Mitos são histórias. Apesar de haver histórias (mitos) sobre as runas, e ainda que algumas das runas refiram-se a figuras ou elementos do mito germânico, as próprias runas não são mitos per se.

Em verdade, as runas não são nem filosofia nem mito – porém, como eu argumentarei, elas demonstrem elementos de ambas. Resumidamente, as runas chegam muito perto de ser o que às vezes é chamado na filosofia uma “ontologia categorial”: uma articulação da natureza da realidade em uma série de idéias fundamentais diferentes. É claro, o termo problemático aqui é “idéias”, porque isso paree sugerir “conceitos”, e as runas não são conceitos abstratos, mas sim imagens ou símbolos de diversos tipos. Eu não estou referindo-me aqui especificamente às formas desenhadas, mas aos nomes das runas (ou àquilo a que elas nomeiam). Olhemos para alguns exemplos específicos.

2. O Significado do Gado

[4]Fehu, como todos sabemos, significa “gado” ou “propriedade móvel” ou “riqueza”. Mas a runa não refere-se a isso em um sentido direto, literal. Em Runelore, Edred escreve de Fehu: “Na cosmologia esta é a força exterior autêntica do fogo cósmico primordial – a força expansiva que responde à contração e solidificação no gelo”. Baseando-me nisso, em minhas “Notas Filosóficas sobre as Runas” eu designei o conceito “Força Expansiva” a Fehu. Mas na verdade Fehu não é o conceito de Força Expansiva. Fehu é gado. Interpretações conceituais da runa e fórmulas como “Força Expansiva” são interpretações do significado de Fehu, ou seja, do significado de gado. Mas elas não são a runa em si ou equivalentes a ela.

Agora, a frase que eu acabei de usar, “o significado do gado”, parece estranha e talvez um pouco cômica. Porém esta é uma pista que pode ajudar-nos a melhor compreender o que é uma runa. Se olhamos para as traduções dos nomes das runas seremos confrontados com o simples fato de que eles referem-se a objetos ou fenômenos que são característicos da vida quotidiana – da “vida mundana”, se quisermos – dos antigos povos germânicos. Deve-se olhar para os nomes das runas, ao invés de para os nomes originais em nórdico antigo, inglês antigo, protogermânico, ou o que seja, porque estes parecem estranhos, remotos, e mágicos para nós. Então, considere o que esses estranhos nomes significam; o que eles denotavam para nossos ancestrais: Gado, Boi, Espinho, Carroça, Tocha, Dádiva, Alegria, Granizo, Necessidade, Gelo, Colheita, Teixo, Alce, Sol, Bétula, Cavalo, Dia, etc.

O que ocorreu em cada caso é que alguma característica familiar do mundo ou da experiência humana foi singularizada e investida com um significado que vai além do imediatamente aparente. Mas uma maneira melhor de colocá-lo seria dizer que em cada caso alguma coisa familiar foi tomada como uma pista ou indicadora ou símbolo de algum princípio, fenômeno, ou força, mais fundamental e ampla. Em outras palavras, na runa Fehu nossos ancestrais realmente perceberam “o significado do gado”. Gado para eles tornou-se o indicador simbólico de algo que tem a ver com mais do que meras vacas. Gado não é apenas gado, mas sim um símbolo da Força Expansiva (para usar nossa formulação “filosófica”).

A questão é mais complicada que isso, porém. Seria mais preciso dizer que o gado foi tomado como um exemplar da Força Expansiva. O gado não meramente simboliza isso, como a águia americana simboliza a América; o gado era considerado como estando de alguma forma imbuído com essa força, sendo assim um exemplar dela. Em outras palavras, uma expressão da Força Expansiva (gado) é considerado como representando todo o fenômeno.

Isso parece fazer das runas exemplos do que o filósofo italiano Giambattista Vico chamou de “universais imaginativos”. Estes ele contrastou aos “universais inteligíveis”. Um exemplo de um universal imaginativo em ação seria quando um bardo canta as glórias de um jovem bravo e diz “Ele é Sigurd”. Nesse caso, um indivíduo, Sigurd, é considerado como representante para a característica de ser bravo. Um universal inteligível, por outro lado, seria “bravura”; é um conceito abstrato abstraído de um número de exemplos de indivíduos bravos. Ao invés de dizer “Ele é Sigurd”, o bardo poderia ter dito “Este homem exibe bravura”. (Mas então, é claro, o bardo não seria um bardo, mas sim um filósofo). As runas são claramente um sistema de tais universais imaginativos, nos quais certos itens encontrados no mundo quotidiano de nossos ancestrais são tomados como exemplares de várias características fundamentais da existência.

A mentalidade que pensa em termos de universais imaginativos é muitas vezes chamada “mito-poiética”, e é óbvio como universais imaginativos formam a base tanto do mito como da poesia. A mente mito-poiética é uma que parece extremamente estranha para a maioria de nós, que estamos acostumados a lidar quase exclusivamente com universais abstratos inteligíveis.

Porém, para compreender o que torna a mentalidade mito-poiética possível não é suficiente simplesmente dizer que ela emprega universais imaginativos. Na verdade, a mentalidade mito-poiética ela mesma é tornada possível por algo mais fundamental: uma orientação radicalmente diferente em relação ao mundo. Ela envolve ver o mundo ao nosso redor como carregado com significado simbólico. Em outras palavras, a menta mito-poiética lê o mundo como nós leríamos uma história ou uma poema, buscando pelos significados simbólicos codificados nela pelo autor. A menta mito-poiética de nossos ancestrais em essência via o mundo como um texto a ser interpretado.

Essa é uma perspectiva extremamente difícil para nós pensarmos através dela. Mas o que nós devemos entender, independentemente do quão seja difícil, é que nossos ancestrais literalmente viam gado, granizo, e bétula como sendo mais do que gado, granizo, e bétula. Ao invés estes eram vistos como sinais vivos, materiais, para a realidade de forças cósmicas e princípios metafísicos, e pistas para o significado da vida.

Para retornar a nossa questão relativa ao relacionamento das runas com a filosofia e o mito, eu disse antes que as runas exibem características de ambas. Eu posso agora expressiar isso muito mais precisamente. As runas funcionam bastante como uma ontologia categorial, dando-nos as categorias fundamentais nas quais a realidade deve ser compreendida. Mas diferentemente das ontologias categoriais da filosofia (tais como as vimos em Platão, Aristóteles, Kant, Hegel, e Husserl) as runas não são universais abstratos e inteligíveis, elas são universais imaginativos nascidos da mente mito-poiética. Incidentemente, nós vemos exatamente o mesmo tipo de coisa nas categorias do sistema indiano Samkhya, e no sephirot Kabbalístico, que também constituem ontologias categoriais mito-poiéticas. Nós também podemos vê-la no sistema de “espíritos-fonte” do místico moderno alemão Jacob Boehme, que Hegel considerou como o primeiro filósofo alemão.

Assim pode-se ver que as runas ocupam, em um certo sentido, um ponto intermediário entre mito e filosofia. Agora, isso significa que a filosofia, e o advento do universal inteligível, constituem um avanço em relação às runas? Eu retornarei a esse ponto depois, após lidar com algumas outras questões.

3. Ansuz, Tiwaz, e Ingwaz

[5]Primeiro, algo que é muito interessante sobre as runas é que elas não constituem um “sistema fechado”. Nós podemos ver isso do simples fato de que o futhark muda ao longo do tempo: ele contrai-se e expande-se. Em outras palavras, novas runas são acrescentadas, ou runas são excluídas. Eu não creio que as razões primárias para isso sejam linguísticas; eu creio que elas sejam ideológicas ou filosóficas. O jovem futhark, é claro, possui 16 runas, oito a menos que o velho futhark. Teria o sistema sido simplificado por razões de conveniência, ou como resultado de reflexão metafísica? Eu estou inclinado a pensar nessa segunda hipótese. O ideal tanto no pensamento mito-poiético como na filosofia (e na ciência, nesse caso) é explicar tudo em termos do menor número de princípios ou “universais” quanto seja possível – e alguns vem a ser entendidos como “contidos” dentro de outros, ou como simplesmente supérfluos.

Aqui está uma outra questão: deve ser notado que há três runas no Futhark Velho que não encaixam-se muito bem na análise das runas que eu dei até agora: Ansuz, Tiwaz, e Ingwaz. (Elas estão todas presentes no futhorc anglo-frísio, mas no Jovem Futhark Ingwaz desapareceu). Eu afirmei antes que as runas referem-se a características da vinda mundana de nossos ancestrais – coisas que eles experimentaram diretamente ou encontravam à disposição, tais como animais, árvores, fenômenos naturais, emoções humanas, e posses humanas, etc. Mas Ansuz, Tiwaz, e Ingwaz não parecem encaixar-se nesse padrão. Ansuz é equivalente a Odin, Tiwaz é Tyr, e Ingwaz é o deus Ing.

Deixando Ansuz um pouco de lado, note que Tyr é, com certeza, um deus celeste, e Ing é um deus terrestre. Então, estes são nomes divinos, mas esses nomes divinos remetem-nos ao céu e a terra. Mas porque eles são designados aqui por nomes divinos? É porque céu e terra ocupam uma posição diferente na vida de nossos ancestrais do que os outros objetos que tornaram-se nomes de runas, os quais existem ou ocorrem ou na terra ou no céu. O sol e o granizo, por exemplo, aparecem no céu, enquanto o boi vaga pela terra, a carroça rola sobre ela, e a bétula e o teixo crescem a partir dela. Alegria, dádiva, e necessidade, fenômenos humanos, também fazem-se sentir na terra. Céu e terra, portanto, são o fundamento contra o qual, ou dentro do qual, estes fenômenos aparecem ou fazem-se presentes.

Céu e terra não aparecem para nós do mesmo modo que objetos no céu ou na terra. Em um sentido real, ainda que céu e terra sejam perceptíveis, eles não são objetos já que nós nunca vemos seus limites: de nosso ponto de vista na terra nós não percebemos nem os limites do céu nem os limites da terra. Céu e terra são aquilo em que tudo aparece, mas eles não aparecem como objetos dentro de qualquer contexto ou horizonte maior. Isso dá ao céu e à terra um tipo muito especial de fundamentalidade: eles são contextos ou horizontes últimos para tudo mais. Como um resultado disso, céu e terra foram sentidos como tendo significância numinosa especial para nossos ancestrais. Tiwaz e Ingwaz então de fato referem-se a características da vida quotidiana de nossos ancestrais, ao céu e à terra considerados em seu aspecto divino ou numinoso. Essa numinosidade era vista, mas não com os olhos; sentida, mas não com as mãos; ouvida, mas não com os ouvidos. Ela era (ou é) uma característica real do céu e da terra – uma característica que agora oculta-se de nós, modernos.

Mas e quanto a Ansuz? Edred diz-nos que Ansuz refere-se a um “deus soberano ancestral”, e que isso remete-, obviamente, a Odin. Aqui também eu afirmarei que, na verdade, essa runa refere-se a uma característica da vida quotidiana de nossos ancestrais.

Lembre-se que eu disse antes que a mente mito-poiética lê a natureza como se ela fosse um texto. Pensemos um pouco mais sobre as implicações disso. Quer dizer tomar o mundo como carregado com significados simbólicos; quer dizer não tomar nada no mundo como estando situado por acidente (essa é a mentalidade, incidentemente, por trás da leitura de presságios e portentos); quer dizer, na verdade, ver por trás de tudo uma intenção consciente. Quando há um texto carregado com sentido, deve sempre haver um autor que carregou o significado nele. Deve haver, em resumo, um Pai-Supremo do próprio mundo.

Vendo o Pai-Supremo por trás do mundo como ele parece-nos, manipulando aparências, mandando-no sinais não é uma escolha consciente ou uma invenção. O que eu estou sugerindo é que está é uma característica fundamental da mente mito-poiética. A mente que lê o mundo como um texto no qual nada é acidental deve ver uma inteligência trabalhando no mundo; uma coisa implica a outra. Assim, em um certo sentido nós podemos dizer que todas as outras runas “implicam” Ansuz, pois a mente que lê o mundo simbolicamente e conquista as runas sente a presença de seu autor, de Odin. Eu disse antes, que a numinosidade da terra e do céu eram sentidas também, ainda que não com os cinco sentidos. Aqui algo similar está acontecendo: a presença de Odin, do autor de tudo, é sentida tão agudamente quanto as coisas são vistas, ouvidas, ou tocadas. Mas apenas por aqueles que possuem a mentalidade mito-poiética. O resto só poderia entender isso em um sentido abstrato. Este é um ponto ao qual retornarei em um momento.

É claro, a inteligência que a mente mito-poiética viu em obra no mundo não foi a mesma inteligência que os filósofos do Iluminismo viram. Pois nossos ancestrais não estavam dispostos a ignorar tudo que deve ser ignorado para ver isso como um universo-relógio e como o melhor de todos os mundos possíveis. Eles estavam ligados ao que é estranho, inquietante, absurdo, e horripilante na existência. E assim seu Pai-Supremo, o autor da natureza, não era um relojoeiro benevolente, mas um deus perigoso, volúvel, e imprevisível; o deus da caçada selvagem, do êxtase da batalha, que coloca parente contra parente, que derruba o antigo e faz emergir o novo através do conflito.

4. Conclusão: As Runas ou Filosofia

[6]Voltemos agora para as questões apresentadas antes: se as runas ocupam uma posição intermediária entre mito e filosofia, constituiria a filosofia algum tipo de avanço para além das runas? Eu posso imaginar alguém interpretando o que eu disse antes como significando que as runas ocupam um meio-caminho entre mito e filosofia.

Hegel certamente assumiria a posição de que a filosofia é um avanço para além das runas (ainda que eu deva mencionar que Hegel jamais disse nada específico sobre as runas). Seu argumento seria quase com certeza de que a filosofia encontra-se em um nível superior que as runas porque o pensamento filosófico (entendido amplamente) é necessário para interpretar o significado das runas. Afinal, as runas não interpretam a si mesmas. Nós temos que dar interpretações filosóficas, conceituais delas (como Edred faz quando ele explica o significado esotérico das runas em Runelore e outros textos). Mas, Hegel afirmaria, se é o pensamento filosófico que revela o significado das runas para nós, então não seria a filosofia uma forma superior de discurso? Para generalizar isso, Hegel sustentaria que a filosofia encontra-se em um nível superior ao do pensamento mito-poiético, já que o pensamento filosófico, conceitual é necessário para interpretar mitos, símbolos, e imagens e revelar seu significado interno. Este é um argumento poderoso, que não pode ser ignorado.

Existe, porém, uma resposta simples para ele. Se a filosofia e seus universais inteligíveis devem ser usados para interpretar os produtos do pensamento mito-poiético, não é porque nós “progredismo” para além do pensamento mito-poiético, é porque essa forma de pensamento perdeu-se para nós (e essa perda não é necessariamente, como afirmarei, “progresso”). Para aqueles imersos no pensamento mito-poiético, o significado de símbolos e associações eram apanhados sem a necessidade do pensamento filosófico conceitual. Nossa interpretação filosófica das runas é algo em que engajamo-nos simplesmente porque o significado das runas não é mais imediatamente aparente para nós, como era para nossos ancestrais.

Permitam-me traçar um paralelo. Suponhamos que eu seja um professor de inglês e eu declame um verso poético para um aluno da faculdade: “Colham botões de rosas enquanto podem,/O velho Tempo continua voando:/E essa mesma flor que hoje lhes sorri,/Amanhã estará expirando.” E suponhamos que ele responda dizendo “Eu não entendi”. Então eu dou a ele um dever de casa: volte na segunda-feira e explique-me o que significa esse verso. Após um bom tempo ele volta na segunda-feira e diz “Ele quer dizer que é melhor vivermos agora enquanto ainda temos chance, porque todos nós eventualmente morreremos”. Eu daria a ele um A, mas eu duvidaria que o autor do poema, Robert Herrick, consideraria que ele avançou a um nível mais elevado de compreensão. Herrick ficaria assombrado que uma análise fosse necessária para compreender seu significado – um significado que as almas mais sensíveis do tempo de Herrick teriam apanhando imediatamente, sem a necessidade de uma tarde inteira de análise, teorização, e possíveis visitas à Wikipedia.

Similarmente, não é o caso que nossos ancestrais estavam expressando coisas que eles teriam entendido melhor se a filosofia já estivesse por aí. Não, eles entendiam essas coisas sem a filosofia. O sistema de runas revelava a natureza do mundo a elas sem a necessidade de interpretações conceituais desse sistema. E nós devemos também reconhecer que todas essas interpretações filosóficas apenas conseguem expressar o significado das runas. Há, de fato, um argumento a ser feito de que tais universais imaginativos situam-se em um nível superior ao dos universais inteligíveis, já que eles parecem conter profundidades que não podem ser exauridas pela interpretação conceitual.

Mas uma questão incômoda permanece: como nós perdemos o pensamento mito-poiético? Como foi que o universal imaginativo foi deslocado pelo universal inteligível?

Para começar, Hegel está correto em dizer que a filosofia é abstrata e que ela deve evitar o sensório. No deslocamento para o universal abstrato, o sensorial é descartado. E o conteúdo sensorial do pensamento mito-poiético tem suas origens na imersão de um povo em um certo estilo de vida: em um ambiente natural ou ecossistema específico, e o modo evoluído da vida de um povo habitando dentro deste ambiente. Parece ser razoável conjecturar, portanto, que a mudança do imaginativo para o universal inteligível, do pensamento mito-poiético ao abstrato, é de algum modo ocasionado pela desconexão de um povo em relação a seu modo de vida.

Isso poderia acontecer de vários modos. Poderia ocorrer como resultado do deslocamento de um povo de seu lar original, e subsequente migração desenraizada. Poderia também ocorrer através do surgimento das cidades, na qual os habitantes estão geralmente afastados do confronto direto com a natureza, e expostos à influência de imigrantes de outras culturas; ou seja, cosmopolitanismo. Grandes mudanças culturais poderiam contribuir para esse processo: tais como, a ascensão da democracia na antiga Atenas, e a consequente e gradual erosão da Tradição através do individualismo, relativismo, e hedonismo.

Estas observações inevitavelmente lembrar-nos-ão de nosso predicamento presente. Nós não somos pensadores mito-poiéticos, e o modo de vida de nossos ancestrais, do qual brotaram as runas, não é o nosso. Portanto, ainda possamos conceder que as interpretações filosóficas que damos às runas é um substituto pobre para possuir a mentalidade de nossos ancestrais, talvez seja o melhor que nós possamos fazer?

Os últimos auroques em registro morreram na Polônia em 1627. Nós não mais sentimos a propriedade numinosa da terra e do céu. Bétula e teixo são apenas bétula e teixo para nós. Isso inevitavelmente significa que ainda que nós lutemos como pagãos para reviver as tradições de nossos ancestrais, nós não participamos naquelas tradições exatamente como eles participavam – simplesmente porque nós não vivemos no mesmo mundo. Este golfo entre nós e nossos ancestrais e o modo de vida deles é doloroso para nós, mas não está claro como superá-lo. Para nós, o paganismo sempre permanece, em um sentido real, como ideal pelo qual lutamos. (Ainda que eu adicione que é tão legítimo para nós chamarmo-nos pagãos quanto é para os cristãos hoje chamarem-se cristãos – já que eles também estão lutando, em efeito, para viver em um mundo que também perdeu-se).

Eventualmente, alguém vai sugerir que nós inventemos um novo conjunto de runas derivadas de nosso próprio estilo de vida. Mas eu não posso aceitar algo assim. Não posso aceitar um Futhark como runas como “facebook”, “amazon”, “redbox”, e “kmart”. E eu tenho certeza de que todos aqui sentem o mesmo. Por que? Porque todos nós estamos convencidos de que nossa sociedade e modo de vida são degradados; de que não há nada natural e sadio naquilo que passa como nosso modo de vida. Nossa única alternativa, portanto, é tentar reconstruir e recriar as tradições de nossos ancestrais.

Mas o único modo de retornar autênticamente e completamente àquelas tradições seria a restauração de seu modo de vida: um retorno ao ambiente natural no qual eles viviam e ao seu modo de vida. Há ainda muitos espaços naturais por aí, mas não seria o bastante simplesmente comprar uma porção dele e estabelecer algum tipo de assentamento germânico nele. Os participantes teriam que ser completamente inocentes em relação à cultura moderna: eles teriam que não ter qualquer memória das atitudes modernas, das invenções modernas, e da cultura popular; eles não poderiam nem mesmo ter qualquer memória da história moderna.

Eles teriam que ver o mundo ao redor com olhos frescos e incorruptos. Se tal situação pudesse ser criada, eu creio que as velhas formas, os velhos caminhos, reconstituir-se-iam entre nosso povo, em sua interação com seu ambiente natural. O céu e a terra seriam novamente percebidos em seu aspecto numinoso. Bétula e teixo novamente seriam mais que variedades de árvores. E a presença de Oden seria sentida uma vez mais, profunda na escuridão das florestas.

É claro, tal situação só poderia emergir pela destruição completa do mundo moderno e de sua memória. Em resumo, a esperança situa-se no Ragnarok.

Source: http://legio-victrix.blogspot.com/2011/11/o-que-e-uma-runa.html [7]